27.6.08

Balé de dominós

Ele se virou na cama pequena para se ajeitar. Naquele aperto três corpos disputavam sobrevivência do calor e cansaço. Num quarto sem janelas, um ventilador ruído pelo tempo mais parecia cuspir fogo com suas palhetas de demônio. O calor devia passar dos quarenta graus. Mas nada que parecesse demais, porque na pele dos três jovens bêbados (bebida ou sono?) as gotas de suor escorriam rasgando as carnes tão bem cuidadas pelo doce da mocidade. Outro rapaz também se mexeu naquela que eram os restos mal-comidos do que um dia foi uma cama. O calor ferveu qualquer tipo de vida: toda cidade parecia estar deserta. As folhas das árvores eram de uma estabilidade mórbida. Todos se resguardavam em suas pequenas moradas abatidas pela inquietante calmaria do sertão. Nada parecia se mover em toda aquela pequena cidade, composta quase unicamente por igrejas. Silêncio... Exceto pelas palhetas do ventilador ruído e, agora, pela inquietude das pernas daqueles dois jovens que ainda não haviam se acostumado com o calor exorbitante do sertão.

Na pequena cama mofada de pensão barata de interior sertanejo os dois jovens travavam uma guerra particular com o cansaço, enquanto que o terceiro dormia num sono abissal. O primeiro, deitado no meio da cama que um dia foi ninho secreto de dois enamorados, mexeu-se. O desconforto de uma cama amarrotada de braços e pernas conglomerada a um calor apocalíptico o acordou do sono. A perna do rapaz a sua direita o encurralava com a perna do rapaz da esquerda, deixando-o atordoado, e assim deu-se o primeiro vira de pernas, ainda embevecido pelo sono mal dormido. A troca de posição deste primeiro, do meio, fez o outro acordar, e assim como uma fileira de dominós que caem em seqüência lírica dum impulso inocente, fez com que este, o segundo, da esquerda, também transpusesse seu corpo da posição inicial. Dois movimentos, um de cada: quase um balé das antigas óperas francesas. A primeira peça caíra, e com elas viriam a baixo todas as outras...

O primeiro voltou a se mexer, impaciência. O segundo continuou a dança, aperto. De volta o primeiro, claustrofobia. O segundo, incômodo. O primeiro, calor. Segundo, cansaço, primeiro, suor, segundo, mistério; primeiro e segundo, tensão sexual.

As mentes jovens em peles selvagens não sentiram passar os quarenta minutos de vira e mexe inconstante na cama. E ao longo desse tempo pernas quentes esbarram-se uma na outra. Nesse universo microscópico de tempo não ligaram para os braços que deitavam um sobre o outro. As palhetas demoníacas jogavam sobre os corpos dos rapazes o ar quente daquele dia de sol rachante, naquele quarto sem janelas, naquele instante sem ponteiros. Os meninos de dezenove anos não perceberam, mas seus corpos estavam se encontrando no curto espaço entre o terceiro colega e a parede onde encostava a pequena cama mofada. Naquele comprimido de espaço e naquele átomo de tempo, o quente suor já não era mais de calor.

As peles úmidas começavam a reclamar mais e mais o corpo do outro. Era estranho, mas suas peles ferventes precisavam do calor do outro. Mas então já não estavam mais dormindo. As pernas que dobravam não se esbarravam por acaso. Os braços pouco musculosos não pousavam mais um sobre o outro acidentalmente. Nada vinha consciente, mas o corpo de um buscava o do outro, insistentemente. Pernas laçavam-se em absoluto constrangimento. Braços juntavam-se desmensuradamente. O que agora pairava no ar não era apenas calor. Corpos quentes e suados expeliam pelos poros uma explosão sensual.

O calor parecia aumentar cada vez mais, a inquietude dos oito membros exacerbava-se em encontros secretos, o suor era agora um perfume afrodisíaco, os garotos já não eram garotos e sim dois corpos sem cabeça buscando a complexa perfeição daquele balé sem fim! Não podiam mais suportar, e o primeiro, que iniciara o desfiladeiro de peças a cair, cercara com suas pernas as pernas do outro. E num movimento delicado envolveu em seus braços o corpo do refém. Os meninos pairavam sobre a iminência do que aconteceria. Seus corpos eram agora um só nó de carne humana. O laço harmonioso de suas tensões estava agora apertado naquele abraço, e o olhar...

Olharam-se por talvez trinta minutos ininterruptos (depois perceberiam que não passaram de segundos aquele momento cristalizado de prazer). E então beijaram-se. As bocas rígidas de traços masculinos se consumavam em estranhamento. As bocas carnudas e carregadas de sabor deliciavam-se num beijo desencontrado. Línguas percorriam o perímetro bucal do outro, uma exploração desejosa de prazer. Parada para olhar. Olhar penetrante, olhar devastador. Suas pupilas dilatadas de desconsertamento confessavam em segredo um medo que não se sentia.

Bocas sugavam todo aquele suor exalado de tensão. O calor pedia liberdade. No fundo, eles pediam liberdade. Os corpos dos dois mostraram-se nus, despudorados um para o outro. Eram belos. Curvas imperfeitas conjuravam erotismo. Suas excitações aliciavam-se em desespero sereno.

Mas o terceiro amigo deu, pela primeira vez, um movimento. Porém foi contende saber que naquele balé o terceiro tivera apenas um breve solo, pois os garotos, que agora já não tinham mais suor pelo corpo, mas apenas suas salivas inebriantes, desmancharam-se no prazer agonizado um do outro.

Tomaram banho ainda se olhando em confissão. O prazer encerrado pela explosão adolescente não bastara. Não, eles não se amaram antes nem depois. Amaram-se avassaladoramente pela eternidade de duas horas. Amaram-se durante os beijos afogados, durante o banho inevitável, durante os litros de prazer, durante o toque afagante e durante o olhar profundo. Aquele olhar que jurava o não jurável. Aquele olhar que aclamava o outro olhar. Amaram-se tenebrosamente durante as duas horas de olhar infinito.

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