3.6.12

Oiseau


O garoto cedeu os dedos e deixou que se revelasse um pequeno pássaro. As mãos que prendiam e sufocavam aquele bichinho amarelo agora permitiam a entrada de luz e ar. Os olhinhos negros do animal levaram alguns minutos para que pudessem abrir e as asas ficaram imóveis por algumas horas, ele esquecera do mundo para além da pele do garoto. No entanto, após se acostumar com a novidade, Oiseau se ergueu lentamente, deu dois passos sobre as mãos firmes do garoto, abriu as pequenas asas e alçou voo. Ele não olhou para trás. Tal qual um recém nascido, a pequena ave havia passado 9 meses cercada por um corpo que não era seu. Ao sair, sentiu pesado o ar que entrava em seu corpo, achou difícil movimentar-se, estranhou a presença de pombos, curiós, sabiás e pardais. Mas, também como uma criança, ele se interessou por todo esse universo novo e adorou conhecer pombos, curiós, sabiás e pardais. Adorou ver as cores que enfeitam o mundo, voar para lugares cada vez mais longes, cada vez mais altos, cada vez mais novos. Oiseau estava conhecendo um mundo que deixara de ser seu havia muito tempo, desde que optara por viver nas mãos do garoto. Sentia, agora, que tudo era carregado de liberdade, que cada movimento seu era só seu e que poderia levá-lo para qualquer lugar. Sentia que sua casa poderia ser a mão de outro garoto por apenas um dia para que na manhã seguinte ele voasse para outra casa, para outra mão. Sentiu que sua casa poderia, inclusive, não ser mão nenhuma, mas sim o topo de um prédio ou o galho mais baixo de uma árvore: não havia limites para sua morada. Sentia, por fim, que aquele era o mundo ideal para um pássaro viver, que a liberdade era o sentido de seu ser.
Entretanto, o tempo foi mostrando que pombos, curiós, sabiás e pardais são todos iguais, que árvores secam suas folhas, que prédios só se diferem pela altura e que até a mais alta construção torna-se trivial. Oiseau descobriu, por fim, que até mesmo a liberdade possui um nível de vulgaridade e mesmice. Agora, que suas asas podiam ir para qualquer lugar, ele simplesmente não havia mais para onde ir. Cansara-se, simplesmente. Desejou, pela primeira vez desde sua partida para o novo mundo, que as mãos do garoto pudessem se estender para ele novamente. De certo que Oiseau não queria o breu solitário daqueles nove meses, mas ele apenas desejou as mãos firmes do garoto para que pudesse descansar as asas doloridas. Desejou um toque daquela pele, um carinho daqueles dedos, um olhar fraterno do garoto que nunca lhe fizera mal. Mas como regressar ao garoto sem a garantia de que as mãos firmes não se fechariam novamente sobre seu corpo? Nada poderia garantir, e Oiseau ficou à espera de algum sinal, de uma resposta, de uma luz que lhe indicasse a hora certa de regressar. O tempo mostrou, no entanto, que algumas coisas nem o próprio tempo é capaz de responder. Meses se passaram e a dúvida do pobre pássaro tornou-se angústia. Esta, por sua vez, com o tempo virou desespero. O tempo mostrou a Oiseau que às vezes o tempo não cura e sim aumenta e aprofunda e machuca ainda mais a ferida. Agora, com as asas ainda mais cansadas de voar para os lugares do qual não suportava mais, com suas feridas ainda mais abertas e profundas e machucadas, com os olhos tristes de tanto chorar, o pequeno animal resolveu que já não havia mais motivo para esperar a tal luz, o tal sinal, a tal resposta. Entendera o que o tempo lhe ensinou e voou à procura do garoto. Este estava exatamente no mesmo local em que deixara o pássaro partir. Oiseau ficou surpreso ao ver que o tempo também maltratara o garoto, mas apesar disso ele mantivera suas mãos estendidas, abertas e completamente firmes. Esperara todo este tempo o retorno da ave? Oiseau já não precisava (nem queria) esperar a resposta. Ele precisava apenas cumprir seu desejo e repousar sobre aquelas mãos que tanto sentira falta. Com um pulo contido ele abandonou o telhado de onde espreitava e planou até as mãos que o aguardavam e olhou fixamente para o garoto. A barba crescera, olheiras perfuraram o rosto, mas o menino continuava com os olhos fraternos e não pareceu hesitar com a chegada do antigo companheiro. Era como se já o esperava. Nada disseram, cantaram ou assobiaram. Ambos ficaram quietos, olhando-se com ternura e calma, sem se preocupar que a tarde ia se despedindo, que o frio se aproximava. O tempo já não castigava mais, nem garoto nem ave, e eles podiam ficar ali o quanto aquele olhar pedisse. Entregaram-se por vários dias ao reencontro simplesmente daquele jeito: imóveis e olhando-se ternamente. Não se importavam com os transeuntes, com o nascer e pôr do sol, com a vida que exige de todos a pressa, a produção, o fim. Eles eram inabaláveis e fortificavam-se com aquele momento que era só deles. Os olhos sorridentes do garoto encontravam as duas continhas negras do pássaro e eles comunicavam assim o quanto sentiam falta um do outro. As semanas que ficaram imóveis era um extensa declaração de amor, como se a linguagem visual levasse um infindável tempo para dizer “eu te amo”. E a cada letra que se formava no olhar de cada um era como se uma bolha de euforia estourasse em seus estômagos. Alimentavam-se assim, e por isso podiam continuar eternamente naquele olhar. Olhos que se declaravam, que os alimentavam, que os complementavam, que os tornavam imortais. Ao final de um mês, fortes e rejuvenescidos, garoto e pássaro fecharam os olhos. Levaram o tempo necessário para que o olhar pudesse completar “eu te amo”. Já inflados com as bolhas de euforia, levitaram: olhos fechados, ambos ainda sentindo o olhar do outro, sentindo o amor que emanava deles e para eles. Ao abrirem os olhos já não haviam prédios, árvores e pessoas, apenas nuvens os cercavam. Flutuaram para além de onde os aviões alcançam, para além de onde alguém já conseguira chegar, para além de onde os sonhos moram. Oiseau não se assustou ao perceber que o garoto já não mais o segurava. Tão pouco se admirou que o garoto já não era um garoto: pequeno e amarelo como Oiseau era agora o garoto. Dois pássaros que não voavam, mas sim flutuavam num céu de azul indescritível. Suas asas ficavam imóveis porque as palavras que trocavam com o olhar os fazia levitar. Eram dois pássaros pequenos e lindos, imunes ao tempo e ao mundo. Eles tinham consciência apenas de três palavras e isso bastavam-lhes na imortalidade.

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