23.3.13

Estrelas de mil pontas


Debrucei-me sobre o horizonte dessa cidade e tentei avistar por detrás dos prédios seus cabelos dourados, como se fossem raios solares rompendo a escuridão das ruas desertas. Esperei por horas e, já cansado, fui dormir. Acordei já perto do almoço e vi o quão claro estava o céu. Corri até a janela para buscar a fonte de tanta luz e não foi difícil encontrar, bem ali na minha frente, o sol que escaldava o asfalto e os telhados das casas vizinhas. Tentei olhar para ele, tentei te encontrar naquele brilho e calor que eram tão profusos quanto você. Ceguei-me. Voltei para o quarto e tateei prateleiras e mesas atrás dos meus óculos escuros. Enquanto isso minha visão foi voltando aos poucos, ainda com pequenas manchas brancas. Encontrei! Corri tão rápido para minha nova busca que quase deixei os óculos cairem ao esbarrar com força no parapeito da janela. Olhei novamente. Os óculos me proporcionaram um pouco mais de contraste entre céu e sol, mas ainda estava longe de conseguir enxergar o centro daquela estrela que continuava a me inebriar com a cor do seu sorriso. Ao longo do dia fiz várias visitas a este mesmo lugar, sempre com novos mecanismos: negativo de filme fotográfico, sobreposições de óculos escuros e até mesmo um telescópio caseiro feito com ambos materiais e ainda mais algumas lentes de óculos de grau que estavam largadas em uma gaveta. Tudo foi em vão. À medida que minhas tentativas fracassavam, o sol ia descendo e se tornando mais ameno, menos agressivo. Já no final da tarde, quando ele já anunciava se esconder por completo, eu fiz uma última tentativa: olhar de olhos fechados. Pareceu-me estúpido, mas minha obsessão superava os limites da razão. Respirei fundo, como que respeitando a minha própria insanidade, olhei para o sol e as nuvens que formavam um belíssimo degradê de laranjas, azuis, amarelos e rosas. Notei como os prédios repetitivos e feios ganhavam encanto sob o crepúsculo. Percebi que só poderia ser você a guiar aquela luz, pois em toda minha vida jamais havia visto uma beleza tão contagiante quanto a sua. Assim como o sol transformava tudo à sua volta todos os dias, você enchia a casa de beleza com apenas um olhar. Era você chegar perto de qualquer pessoa para que esta fosse tomada de amor. Uma beleza silenciosa. Enquanto eu divagava entre lembranças de cafés da manhã e passeios de mãos dadas, o sol projetava ainda mais cores no céu, anunciando seus últimos instantes. Então fechei os olhos. As pálpebras logo se encheram do clarão alaranjado. Certa vez li que isso se deve ao fato da luz incidir sobre os vasos sanguíneos da pele. Discordo. Às vezes, mesmo em escuridão absoluta, me deparo com aquele clarão alaranjado inundando toda a minha mente. Pode até ser a luz, mas acho que é a nossa luz, aquela fagulha lá dentro da gente que nos lembra todos os dias que estamos vivos e, mais que isso, nos lembra a força que ela tem. Macabéa, personagem do livro A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, vomita, ao morrer, uma estrela de mil pontas. Penso que essa luz pode ser essa estrela, um pedacinho de universo que está guardado lá no fundo da gente. Independente de qual estrela, minhas pálpebras estavam inundadas de luz. E foi assim, com um filtro de lente alaranjado, que eu enxerguei prédios formando uma cama de tijolos e cimento. Nuvens que tomavam todo o espaço e que agora estavam ainda mais rubras. No meio dessa moldura estava o sol, que já não era mais o mesmo. Os raios que antes ofuscavam minha visão deram lugar a espessos fios de cabelos dourados que brilhavam como fogo. O núcleo inacessível da estrela deu lugar a uma pele quente e sedosa. Também estavam lá olhos da cor do mar e das matas, uma hibridação perfeita da natureza. E, no meio de tudo, se destacava a fonte de toda aquela luz, a força que era capaz de secar oceanos e derreter geleiras: seu sorriso, com todas as imperfeições e beleza. Ele me tomou por completo, senti que minha existência já não se devia à oxigênio, batimentos cardíacos, funções cerebrais, corrente sanguínea, suficiência renal, hormônios, células em troca contínua de substâncias... Nada! Meu corpo e mente eram uma coisa só, ambos compostos de de um clarão alaranjado. Todos os sessenta e seis quilos do meu corpo pareceram se esvair em apenas um segundo, já não havia pele, músculos, ossos e órgãos a pesar e segurar essa massa de luz. Senti-me como uma micropartícula que preenche todo o universo, admirando a fonte de minhas energias. Toda expansão de um ser! O máximo que um ser vivo pode alcançar, eu alcancei com seu sorriso. Estarra irradiante... Aos poucos seus cabelos foram suavizando o brilho por detrás dos prédios. Depois seu queixo... Então o seu sorriso foi sendo encoberto também. Mesmo com a despedita, ele continuou intacto, firme, forte como só o sol poderia ser. Você foi desaparecendo no horizonte até restar apenas dois olhos verdes-alaranjados. Eles ainda sorriam, mesmo sem dentes. O tempo também se encarregou de encobrí-los de concreto. Quando restava somente alguns poucos fios dourados de cabelo, eu abri os olhos. O laranja deu lugar ao preto. Meus sessenta e seis quilos me invadiram de uma só vez. Havia retornado para minha sacada, para uma cidade longe de você. Chorei. As lágrimas traziam açúcar e sal, alegria e tristeza, pela sua chegada e pela sua partida. Voltei para meu quarto e fiquei prostrado na cama a pensar sobre o que só eu pude ver, o que só eu poderia narrar. Os minutos que te levaram de mim também estavam me torturando de saudade. Saudade... Saudade é quando a gente mora fora da gente. Eu estava desabrigado. Perdi-me em lembranças e me encontrei em pensamentos sobre a saudade. Enquanto isso o tempo ia passando e já era madrugada. Voltei para o cenário de minha expedição ao sol e contemplei novamente a escuridão. Aquele pretume nunca parecera tão feio. Minha experiência de molécula de luz fazia tudo à minha volta parecer impuro, menor, inóspito. Lembrei, então, de todas as mazelas e dores desse mundo. Vi o quão escura é essa vida, como esta noite. Tomei nojo pelos mentirosos, corruptos, imundos, pela desigualdade, descriminação, injustiça, ganância... Queria voltar para a expansão do meu ser, como na tarde anterior. Fechei os olhos novamente. Não havia mais clarão. Chorei. Voltei para meus pensamentos até que adormeci. Sonhei com a realidade: assaltos, mortes, ódio, pessoas más... E, de repente, tudo foi tomado por lava, como se um vulcão tivesse explodido ali por perto. Como um copo que se enche de suco de abóbora, minha visão foi sendo tomada pela imagem daquele líquido quente e enfumaçante, até que tudo foi preenchido. Entre o sono profundo e a lucidez, pensei que talvez tivesse amanhecido e aquela luz fosse o sol na minha cara. Acordei. Ainda era noite. Fui até a janela e procurei algum vestígio do sol, uma vaga possibilidade que me transcendesse novamente e explicasse aquela inundação. Nada, só escuridão. Desapontado, respirei fundo e fechei os olhos buscando conforto. Fui tomado novamente pelo clarão laranjado, como a lava que preenchia meu sono. Abri os olhos, assustado: noite, ainda. Repeti o processo. A noite não encobria aquela luz. Foi então que entendi que não fora o sol que me fizera ver você e me retirar de meu corpo. Queria, então, explodir de algeria. Queria, como Macabéa, vomitar uma estrela de mil pontas... Voltei para a cama e fechei os olhos. O mundo já não sofria tanto.

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